domingo, 7 de julho de 2013

ANTÓNIO GIL in «A CÉU ABERTO»

ANTÓNIO GIL in «A CÉU ABERTO» (Prémio de Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores ano de 1999, edição Difel 2002) 




alisas as pregas do vestido, as ondas aquietam-se, o mar agora cansado, parece repousar no teu regaço.


*

o navio que te afastava suspendi atando / uma ponta de seu fumo a uma nuvem / outra a sua chaminé
ainda assim está, balouçando, sempre que nessa direcção a memória sopra).

segunda-feira, 1 de julho de 2013

António Gil in «Ciclo Marítimo», poema publicado na Revista Plágio, ano de 2002


Às vezes rebenta-me o mar nos lábios
na voz , nos reveses da pele e da língua
no reaceso vento que, de ocidente, o impele
contra o mangue: rebenta-me o mar no sangue
na garganta e o demente furor que o decanta...

...rebenta-me nos órgãos
na linfa, às vezes o mar entra-me pela boca
entranha-se no ar que respiro, na voz,
na melodia que persigo,
emaranha-se nas veias, rebenta-me:
consigo senti-lo nas têmporas
no pulso, no sal do suor que destilo...

...e contra os esporos
rebenta-me: na restinga da tarde

entra-me pelos poros, pelas pupilas
sinto-o no sal que no sabor distingo
nas papilas, às vezes no odor que transpiro
rebenta-me o mar nos vasos
entra-me pelos tímpanos
e em todos os sentidos, em todos os casos:
rebenta-me...

IMAGENS: Aguarelas do autor

sábado, 29 de junho de 2013























ANTÓNIO GIL in « INDÚSTRIAS DO ABSOLUTO» (Areias do tempo 2011)

Arrepia-se-me a pele
quando dicurso sobre arte:
combino rasgos de Mozart
com progressões de Ravel

planeio um dia reunir
em estranho sonho ubíquo
as paisagens de Chirico
com interiores de Vermeer

será uma ideia venal
reconheço a criancice:
terei «décors» de Matisse
com exteriores de Chagall

sou o emissário do sublime
e nesta profissão tão rara
permitem-me amar Tzara
e fornicar com Céline

eis-me no supremo estádio
do talento triunfante:
a grandeza de Bramante
a proporção de Palladio

farei Arte que perdure
supreendendo o Diabo:
darei a leveza de Gabo
à massa inerte de Moore

sou o adepto do choque
da combinação certeira
prego pasmos de Oliveira
às tensas teias de Hitchcock

sou esteta e por conseguinte
passo bem por impostor
fecundo máscaras de Ensor
com filigranas de Klimt

excedo-me: sou volúvel
cruzo em sublime deboche
as alucinações de Bosch
com o grotesco de Brueghel

sinto próximo o avatar
da luz que beija e agride:
teço doçuras de Ingrid
com angústias de Ingmar

e para quem não me ouve
sinto ainda mais afã
de introduzir em Chopin
os ribombares de Beethoven

assumirei o «status quo»
dos deuses de circunstância
da moda e da elegância
que finge vestir o nú

e na arte em que me instalo
posso bem dar-me ao luxo
de assinar, de alto e repuxo
um produto que aqui calo

e assim fugido ao fado
-alexandrino ou outro
eis meu endereço, dou-to
com o mundo que enquadro

*

Imagem: Capa de «Indústrias do Absoluto» concebida pelo autor

domingo, 23 de junho de 2013

ANTÓNIO GIL, in « FERRAMENTA ZINE nº1

...Quando o fim da tarde entretece na alvenaria a enorme sombra dos carvalhos, os sons da cidade esvaem-se , atraídos pela chama alaranjada das janelas e o riso das crianças escorrega como areia nas mãos de um menino que brinca de costas para sua mãe triste: é a essas horas que, numa cidade que desde o primeiro dia lhe parecera familiar, um qualquer transeunte se há-de descobrir estrangeiro e ao chegar ao seu desolado quarto, o mais pequeno dedo de sua infinita tristeza premirá o interruptor como se com tal gesto pudesse apagar, por uma noite inteira, a via láctea...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

ANTÓNIO GIL in «OBRA AO RUBRO» (Lua De Marfim Editora, 2012)

AURORA CONSURGENS

rubra luz que em silêncio
traz a haste incandescida
leve fragância de incenso.
derramada sobre a vida

evola de mim o fumo
em helicoidal desenho
e dirige-o sempre rumo
a alturas que não tenho

ergue de mim o perfume
enquanto em lento arder
vejo tua cinza incólume
vingar sobre o anoitecer

e que seu aroma espalhe
no dia recém-nascido
com o precioso detalhe
do fumo no ar, esculpido

todas as cores do dia
acabado de nascer
e esta paz e harmonia
que não fiz por merecer


quinta-feira, 20 de junho de 2013

ANTÓNIO GIL in «CANTO DESABITADO», poema de encerramento do ciclo «ECOS» (Cadernos de Poesia da Colecção Coisa que Não Existe, Edição Ave Azul, 2005)

*

ferida aberta, cada um de meus sonhos se fez sulco e por essa dor aferida, a cicatriz se fez senda: por aí ainda caminha a cega face que vou tendo, dela só sei que segue, a cada passo me vertendo naquilo que vou sendo...

... refaço-a a partir do vago compasso da ventania, do estalar da vaga, do solo ressumando a litania dos dias já completos, do coro de insectos que desde o colo ouço, do som estelar que decora o colosso de cacos, dos incontáveis pedaços que colo e retraço...

entre paisagens e noites de gasto esforço, de viagem em viagem, o escorço se fez curso. nas margens do vento, colho a vagem e a semente que recolhe ao solo que escolho. nele acampo e sonho a tenda que levanto: esse o campo, onde implanto o rebento que me reinventa e me suplanta...

quarta-feira, 19 de junho de 2013

ANTÓNIO GIL in «A CÉU ABERTO» (Prémio de Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores ano de 1999) 





vários outonos escorreram pelo aparo que rasga através da vidraça a serena caligrafia desta chuva . 
destapo de novo as caixas onde depositei a intermitente luz que comanda os secretos mecanismos deste impulso...

...e recomeço a escrever como se para lá da chuva que cai, pudesse ainda haver um lugar para os desertos que continuamente me percorrem...